A Dama e o Valete

em terça-feira, 6 de outubro de 2015




Por Verônica Lira
Conta-se que o nome da dama era Elena. Viveu na Inglaterra no século XVIII, e foi esposa de um marquês. Este, embora um homem íntegro, não era o ideal que ela procurava. De fato, o marquês passava mais tempo com seus amigos políticos e com suas amantes do que com a esposa, e isso a deixava muito entediada.

Em contrapartida, ele cedia a todos os caprichos dela. Dava-lhe tudo o que pedia: os melhores vestidos, as joias mais caras, um pedaço de terra murada para plantar o jardim grotesco de plantas exóticas que ela garantira ao marido que o jardineiro não saberia cuidar, por isso ela própria cuidava... Deu-lhe até um valete! Este não era um luxo comum às damas. Geralmente os valetes só serviam aos senhores. A não ser que se castrasse o valete. Mas, por alguma razão incompreensível, o marquês não estava preocupado.

O moço fora escolhido a dedo. Thomas era jovem e agradável, e apesar do que ela tenha feito parecer, não era um mero acaso ele ser um jovem atraente.


Um dia, Elena, entediada e frustrada com uma ausência inesperada do marido, que partira em viagem à Escócia, dispensou todas as criadas. Apenas Thomas permaneceu em serviço. Ela esperou até que fosse noite alta, e todos na casa fossem envolvidos pelo sono mais profundo, para chamar o valete ao seu quarto.

Mesmo numa época em que a hipocrisia oferecia um delicioso espetáculo à sociedade moralista, uma mulher se servir do valete como um homem se serve de uma meretriz era um escândalo ao qual nenhum mortal poderia sobreviver. Mas Elena não era qualquer mortal.

Certa vez, quando ainda estava sendo cortejada pelo marquês, alguém deixou escapar em tom zombeteiro num jantar social que Elena era uma feiticeira. O comentário viera de seu próprio irmão, e arrancou risos de todos os presentes. O próprio marquês achara divertido dizer-lhe ao pé do ouvido, num breve instante em que ficaram a sós no saguão, que estava apaixonado por uma feiticeira.

Aquela era uma mentira, é claro. Elena estava certa de que o marquês jamais a amara de verdade. Apenas fazia bem ao seu ego masculino ter uma esposa tão jovem e bela, visto que sua idade já se avançava.

As pessoas nunca aprendem a tempo quantas verdades são ditas em meio a sorrisos marotos. Outro comentário comum que se fazia em tom de zombaria na corte era que Elena hipnotizara o marquês, e que seria capaz de hipnotizar toda a sociedade de Londres se lhe fosse conveniente. A este comentário ela apenas respondia com um sorriso misterioso.

Durante várias noites, mesmo depois do regresso do marido, ela recebeu o valete em sua alcova. Aquela casa era tão grande que as coisas aconteciam debaixo do nariz do marquês e ele não percebia. Até o dia em que ele os flagrou. Mas aquela foi uma noite confusa. Ele estava ébrio, e as imagens eram tão obscuras em suas lembranças que ele não estava certo de ter visto ou imaginado o valete no leito de sua esposa. Talvez fosse ele próprio o homem no leito dela, na ânsia do amor, sentindo-se jovem como o valete.

Pela manhã, ao acordar, ele a viu ao seu lado, o que o fez crer, mais do que por qualquer outro motivo, que imaginara o valete no quarto.

E pelas semanas seguintes, o marquês voltou a sua rotina de embriaguez social, discussões políticas e orgias com meretrizes. Às vezes, às vistas das pessoas, era como se Elena não existisse, já que o marquês tão facilmente a ignorava.

Enquanto isso, as noites de Elena se perdiam em beijos febris, amores convulsos, e sussurros levianos. Passado algum tempo ela parecia já haver se esquecido de que o rapaz que a possuía todas as noites era somente um valete, e ele, que à princípio se chegou cheio de pudores, temendo as consequências se fosse apanhado novamente na cama de sua senhora, agora a tomava como um homem apaixonado toma a donzela de seu deleite.

Tornou-se comum Elena ser vista no teatro acompanhada do valete, uma vez que o marido não dava grande importância aos espetáculos públicos. A cena causava espanto a alguns conservadores. As mulheres se escandalizavam, sobretudo que o marido permitisse que Elena desfilasse perante a sociedade pelo braço de outro homem. Os cavalheiros, no entanto, tinham outra visão do jovem valete: “Teve o membro amputado, por certo”, diziam alguns. “É efeminado”, zombavam outros. A maioria parecia divertir-se mais que escandalizar-se com a situação.

Certa noite, Elena sorveu o veneno do ódio diretamente dos lábios do marquês. Era uma das raras ocasiões em que ele se lembrava que tinha uma esposa, e em vez de amá-la como deveria, a tomava como por mera obrigação de marido, geralmente ébrio e frio como um homem que se casa com uma megera e se torna frígido como ela.

Num gemido infame, o marquês a chamou de Iolanda.

Iolanda. A esposa do primeiro-ministro. A dama de olhos safira que todos os homens da corte cobiçavam. A mulher com quem o marquês passava as tardes em delírios febris.

Elena não reagiu, e o marquês pareceu não ter percebido a própria confusão. Mas ela guardaria aquele nome.

Não foi uma ideia repentina. Há algum tempo Elena já vinha pensando nisso. Seu caso com o valete não era simples vaidade de mulher desprezada pelo marido. E não lhe agradava a ideia de passar toda a vida tendo encontros furtivos com o rapaz em sua alcova. Poderia conter a fúria do marquês se descobrisse, mas não queria se obrigar a usar mais uma máscara.

De madrugada, enquanto o jovem valete dormia em seu leito, Elena se levantou e foi até seu jardim particular. A porta ficava sempre trancada, e o próprio jardineiro preferia não entrar ali. Dizia que o lugar parecia mais um panteão que um jardim. Algumas daquelas plantas tinham um odor repugnante, e outras, nem mesmo o jardineiro sabia dizer de que espécie eram.

Elena colheu algumas ervas de um vaso no meio do jardim, e amassou-as ali mesmo na pedra de uma mesa redonda. O pó daquelas ervas parecia se dissolver ao mínimo toque, e não possuía cheiro.

A criadagem dormiu mais do que de costume naquela manhã, e quando começaram o serviço, uma criada sentiu um odor peculiar de chocolate na cozinha.

Ninguém notou particularmente o avançado da hora, e todo o dia discorreu normalmente no palacete do marquês, até o princípio da noite, quando Elena fez questão de servir pessoalmente o licor habitual do marido na alcova dele.

Havia algo estranho em seus modos naquela noite. Elena estava carinhosa com o marido, e muito mais sedutora que de costume, como se de repente adivinhasse todos os delírios insanos do velho devasso e quisesse assomá-los a outros ainda mais infames.

O marquês sorveu o licor todo num gole, e completamente possuído de desejo bebeu nos lábios dela beijos intensos que jamais cobiçara. Elena alimentava a paixão do marquês como a lenha que alimenta o fogo, e embora ela não tenha ficado mais do que dez minutos no quarto dele, lá dentro, era como se as horas discorressem no mais intenso desvario.

A certa altura, sem saber se a dominava ou se era dominado por ela, o marquês deitou a esposa no leito, as faces febris, e os olhos ardendo de paixão. Elena apertou-o em seu peito. Estava usando o perfume de rosas de suas núpcias, aquele odor que as ninfas e as deusas conceberam para inebriar os sentidos mais fracos dos pobres mortais. O marquês inspirou profundamente aquele perfume; deixava-lhe louco.

Num lampejo de desvario, as luzes das velas no quarto pareceram oscilar ao som de tecido rasgado. Os olhos do marquês se dilataram como que perdidos nas órbitas. Havia uma expressão dolorosa em seu rosto; dor misturada à insanidade.

Outro som fez as luzes oscilarem novamente, mas já não era mais o tecido. Agora era a carne que se rasgava. O olhar desvairado do marquês se intensificou, enquanto o cheiro metálico de sangue inundava o quarto.

De repente ele caiu sobre o peito dela. Elena ofegou um instante, empurrando o corpo do marido para um lado. Ergueu a lâmina da adaga embebida no sangue do marquês diante dos olhos. Aquela seria a única testemunha infame de seu crime... ou favor. Não podia ter dado àquele homem devasso morte mais prazerosa: arrancando sua vida em delírios no leito de sua luxúria.

Da alcova do marido, a marquesa foi direto para os braços do valete. Ainda havia sangue em suas mãos quando deixou o quarto, mas lavou-as numa tina antes de entrar na própria alcova. Depois de uma vigília velada em perdição, Elena viu o valete adormecer ao seu lado e tornou a se levantar.

Os lençóis do marido estavam banhados em sangue quando retornou ao quarto dele. Fez deles um saco para envolver o cadáver do marquês e arrastou-o até a carruagem. Era curioso que o cocheiro não se lembrasse de nada que acontecera naquela noite, como se tivesse dormido e tido sonhos nebulosos até o amanhecer.

Naquela manhã, Elena vestiu Thomas com as roupas de seu marido, e pediu que lhe acompanhasse no desjejum, e se sentasse à mesa no lugar que era do marquês. Nenhum dos empregados pareceu notar qualquer coisa estranha naquela cena.

Mais tarde foram notificados por um mensageiro sobre a morte da esposa do primeiro-ministro. A dama havia se queixado de um mal-estar no dia anterior e foi se deitar. Pensaram que ela estava apenas repousando, até que a criada a encontrou morta no quarto.

Quando chegou ao palacete do ministro para o funeral de Iolanda, de braços dados com Thomas, a quem ela dera os trajes do marquês, Elena exibia um profundo olhar de resignação.

Sua entrada conquistou a atenção de todos os presentes, e interrompeu o relato do ministro sobre a suspeita de que Iolanda tenha sido envenenada, pois o mal-estar começou após ela ter degustado alguns bombons que recebera naquela manhã. Apertaram o moleque que os entregou, mas ele insistia em dizer que não se lembrava de quem os enviara.

Outro fato curioso que era comentado no palacete no momento da chegada de Elena, era a respeito de um homem que fora encontrado morto na viela atrás da taverna, com o peito rasgado. Na certa, resultado de uma confusão provocada pela embriaguez, mas ninguém se lembrava de já tê-lo visto antes.

No entanto, o que deixou Thomas mais perturbado ao adentrar o palacete foi o anúncio do arauto. A princípio, pensou tratar-se de uma confusão motivada pelo momento fúnebre. Mais tarde, porém, ele se perguntou por que toda a sociedade de Londres, de repente, passou a chamá-lo de marquês!



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