Houve
uma época em que era comum pessoas criticarem quem gostou do filme Titanic como
se a pessoa tivesse cometido um crime hediondo, ou estivesse desfilando pela
rua com uma calcinha fio dental na cabeça. E verdade seja dita, muitas dessas
pessoas que criticavam quem assumidamente gostou do filme, também gostou, mas
não admitia porque estava na moda zoar o fandom.
Agora,
já se passaram vinte anos desde que o filme foi lançado – misericórdia, dá até
medo mencionar esse fato! –, e vale dizer que, independentemente de a qual
facção você pertencia – os que amaram, assumiram e foram zoados com muito
orgulho; ou os que amaram, guardaram para si, enxugaram as lágrimas pelo DiCaprio, e aporrinharam os amigos que gostavam de ver fotos do elenco do filme
na revista Capricho –, provavelmente vai concordar que Titanic é um dos filmes
mais bonitos já produzidos.
James
Cameron rodou simplesmente a versão definitiva do filme. Afinal, Titanic de
1997 não foi o primeiro filme a mostrar o naufrágio do famoso transatlântico,
mas alguém aí se lembra dos outros?
Hein?
Lembra?
Pois
é...
E
olha que houve uma versão lançada menos de um ano antes, somente para
televisão, estrelada por Catherine Zeta-Jones – a linda Helena De La Vega que
roubou o coração de Antonio Banderas nos dois filmes mais recentes do Zorro – e
Peter Gallagher – o bonitão que passou toda a semana do Natal em coma, sem
saber que estava noivo da Sandra Bullock, enquanto ela arrastava uma asa para o
seu irmão Jack, em Enquanto Você Dormia –, com roteiro não muito diferente do
filme de James Cameron, focado em outros passageiros do Titanic, a maioria
personagens reais, e que também realçava a distinção das classes sociais a
bordo. Curiosamente, esse telefilme só chegou ao Brasil alguns anos depois do
filme de Cameron ter virado hype, e
alguma emissora muito espirituosa – ou muito sem noção, o mais provável – o
exibia com o título Titanic 2! Como
se fosse possível produzir uma continuação da história de um navio que está no
fundo do oceano...
E
na verdade houve um Titanic 2 no
cinema, lançado em 2010, que contava a história de outro navio, que no
centenário do naufrágio recebeu o mesmo nome do fatídico transatlântico, e teve
a missão de refazer sua rota em sentido contrário – de Nova York à Inglaterra
–, mas um tsunami lançou icebergs em sua rota – insinuando que talvez o nome do
navio estivesse amaldiçoado.
Pouca
gente se lembra desses dois fiascos hoje em dia, filmes que tentaram reproduzir
a ideia maravilhosa de James Cameron – o de Catherine Zeta-Jones correu para se
lançar primeiro, mas o filme de Cameron já estava em processo de produção desde
1995 –, só que sem a mesma habilidade, e, sem dúvida, com orçamentos MUITO
menores.
Mas
voltando algumas décadas no tempo, Hollywood produziu vários filmes baseados na
tragédia. Um deles, Saved from the
Titanic, lançado apenas 29 dias após o naufrágio, foi escrito e estrelado pela
atriz Dorothy Gibson, sobrevivente da tragédia. Claro que estamos falando da
época em que os filmes eram mudos, e este, em particular, foi um curta-metragem
de 10 minutos, então, não estranhem ele ter sido gravado, editado e lançado em
tão pouco tempo. Eram outros tempos, outra tecnologia, um outro mundo.
Aliás,
este foi um dos primeiros filmes a utilizar cor em pelo menos duas cenas
gravadas em Kinemacolor. Pena o filme
ter se perdido, já que suas últimas cópias foram destruídas num incêndio. Quem
sabe um dia descubram que aconteceu com ele o mesmo que com Nosferatu, que sobreviveu graças à
cópias piratas.
A
versão que teve maior visibilidade foi A
Night To Remember (Somente Deus Por Testemunha), de 1958, baseado no livro
homônimo de Walter Lord, um documentarista americano. O filme até teve boa
bilheteria na época em que foi lançado, e foi bastante aclamado por
historiadores e sobreviventes do Titanic por sua precisão histórica, mas
posteriormente acabou esquecido.
O
que nos traz de volta ao tão injustamente difamado filme de James Cameron, e ao
motivo de ele ter feito tanto sucesso. Este foi o primeiro filme a focar na
tragédia humana, em vez do desastre histórico. Mas para explicar melhor a
descoberta do sucesso de Cameron, é preciso explicar como ele foi concebido.
Quando
iniciou seu projeto, James Cameron, na verdade, não planejava rodar um filme
sobre o Titanic. O que ele queria era um financiamento para poder explorar
pessoalmente os destroços do navio no fundo do oceano. É sério!
Os
destroços do Titanic foram encontrados em 1985, mais de 70 anos após o
naufrágio, porque, de duas uma: ou o navio seguiu em diagonal enquanto
afundava, afastando-se vários quilômetros do local do naufrágio enquanto descia
mais de três quilômetros oceano abaixo, ou – o mais provável –, o Quarto Oficial
do Titanic, Joseph Boxhall, responsável por atualizar a posição do navio, se
equivocou ligeiramente nos cálculos das coordenadas de sua localização quando
pediu aos operadores de rádio que transmitissem a mensagem de socorro. Esta
hipótese é aceitável, pois, de acordo com depoimentos dos Oficiais do Carpathia, o navio que recolheu os
sobreviventes no mar na manhã da tragédia, eles demoraram um pouco mais que o
previsto para encontrar os botes, pois estavam a 21 km das coordenadas que
receberam pelo rádio. Vale ressaltar que na tarde de 14 de abril, o Capitão
Smith, depois de receber vários alertas de gelo dos navios que iam à frente do
Titanic, mandou que a rota do navio se alterasse um pouco para o sul – provavelmente
ao mesmo tempo em que ordenou que aumentassem a velocidade –, então é possível
que Boxhall tenha realmente se enganado um pouquinho nos cálculos quando deu as
coordenadas ao operador de rádio. Também é possível que o rapaz não tenha
entendido algum dos números rabiscados pelo Oficial, e decidido que não faria
muita diferença transmitir, por exemplo, 21 ou 27, mas isso é especulação
minha...
Mas
como ia dizendo, desde que foram encontrados, os destroços do Titanic atraíram
muita curiosidade. Diversas expedições foram enviadas ao fundo do oceano – e
bota fundo nisso: o navio foi encontrado a 3.843 metros de profundidade, 650 kms
ao sudeste de Terra Nova, Canadá, cercado por um campo de detritos de
aproximadamente 8 km, com objetos e peças do navio que se espalharam enquanto ele
afundava, ou quando ele atingiu o fundo do mar – para explorá-los, examinar sua
conservação ou deterioração, e trazer pedaços e objetos à superfície para serem
estudados e, mais tarde, expostos em museus dedicados às vítimas da tragédia.
Grandes placas de ferro do casco do navio foram resgatadas do naufrágio, e
através delas foi possível constatar que o Titanic foi construído com a
estrutura básica de um navio de guerra, o que certamente colaborou para as
lendas sobre sua invulnerabilidade.
Um
fato curioso é que, embora tenha sido amplamente divulgado posteriormente,
nenhum jornal ou veículo de mídia da época havia descrito o Titanic como
“insubmergível” ou “inafundável” até ele naufragar. Ele era descrito como
“luxuoso”, “gigante”, “o maior navio do mundo”... Mas “inafundável” só lhe foi
atribuído após o desastre. Provavelmente por algum jornalista irônico da
época...
James
Cameron era fascinado por naufrágios, e passou anos obcecado em explorar os
destroços do Titanic. Mas é claro que estúdios como a Paramount e a 20th
Century Fox não financiariam essa expedição a troco de nada. Então Cameron os
convenceu de que ele queria explorar o local do naufrágio para fazer um filme. Ele só não havia decidido
ainda como seria esse tal filme; talvez um documentário...
A
bordo de um submarino extremamente resistente, numa área altamente perigosa,
onde a pressão de 6.000 libras por polegada quadrada da água, e uma mínima
falha na superestrutura do submarino poderia condenar todas as pessoas a bordo,
inclusive o diretor, Cameron realizou seu sonho de descer mais de três
quilômetros no fundo do Atlântico Norte, e ver de perto os destroços do famoso
navio.
As
tomadas que vemos no filme, que mostram imagens do navio no fundo do mar foram
feitas durante esta expedição. O submarino conseguiu acessar partes impensáveis
do sítio arqueológico – e, pelo que se sabe, foi responsável pelo desabamento
de parte da estrutura por causa de um pequeno acidente de percurso numa manobra
–, filmar partes preservadas do navio, inclusive salões e o interior da cabine
do Capitão, objetos pessoais, sapatos abandonados numa posição que indica que
ali, mais de setenta anos antes, foi o local de descanso eterno de uma das
vítimas, há muito decomposta...
Ao
retornar desta expedição, Cameron afirmou ter finalmente compreendido o
Titanic, e tudo o que o navio e seu naufrágio representaram na época. E ele
percebeu que não poderia simplesmente escrever mais um filme técnico,
explicando os eventos que levaram ao naufrágio do maior navio de passageiros do
início do século XX. Ele precisava conectar as pessoas à tragédia humana, ao
trauma das vítimas, e ao que os sobreviventes carregariam ao longo de suas
vidas após aquela noite. E para isso, antes de mais nada, ele precisaria criar
a identificação do público com algumas das vítimas, para que se pudesse
compreender a dimensão da tragédia.
Assim
ele criou nosso casal tão polêmico, tão divisor de opiniões, e,
indiscutivelmente, tão admirado por apoiadores e alopradores do filme.
Para
início de conversa, ele precisava de um casal jovem, porque, partindo do
princípio de que Cameron, indiretamente, se colocou dentro do filme, na pele do
explorador de naufrágios e caçador de tesouros Brock Lovett, que ouviria a
história do Titanic da boca de uma sobrevivente, precisava de alguém que
tivesse possibilidade de ter chegado vivo a 1997, oitenta e quatro anos após a
tragédia, e com lembranças nítidas daquele episódio, logo, não poderia ser uma
criança. Ele forçou a idade de sua protagonista até o limite aceitável: 17
anos, na época do naufrágio; mais ou menos 101, na época do filme. Para quem
gosta de colecionar coincidências intrigantes: Edith Eileen Haisman, uma das
mais longevas sobreviventes do Titanic, morreu em janeiro de 1997 – mais ou menos
dez meses antes da estreia do filme –, aos 100 anos de idade – completados em
outubro –, ela tinha quinze anos quando o Titanic afundou; Lillian Asplund, a
antepenúltima sobrevivente a deixar este mundo, morreu em maio de 2006 – ela
tinha seis anos na época do naufrágio, e completaria cem anos em outubro –; a
última sobrevivente a morrer foi Millvina Dean, em maio de 2009, aos 97 anos –
ela tinha dois meses de idade na época do naufrágio. Esta, pelo menos, não
tinha lembranças traumáticas daquela noite, exceto o que posteriormente lhe
contaram. E aposto que estas últimas se identificaram com o filme.
Em
toda a sua carreira como cineasta, Cameron sempre gostou de contar histórias de
amor, e decidiu que esta era precisamente a melhor maneira de contar a história
do Titanic, e conectar o público a uma tragédia tão distante. Afinal, quem não
gosta de um bom romance? Assim nasceram Jack e Rose, o Romeu e Julieta do
Titanic.
E
não dá para negar que ele foi certeiro! Jack é engraçado, bem-humorado,
otimista, e, se Leonardo DiCaprio não é tão gato quanto algumas pessoas
apregoam, também não desagrada aos olhos de ninguém; e Rose é divertida,
extrovertida, sem frescuras, sem preconceitos, consegue superar suas
fragilidades e sabe ser determinada quando quer.
Pelos
primeiros noventa minutos do filme, Cameron nos apresenta os personagens, conta
como eles embarcaram nessa viagem, como se conheceram, como se apaixonaram, e
faz com que o público também se apaixone por sua história. Só quando já estamos
seduzidos pelo casal, ele revela a noite do naufrágio, e faz com que seus
personagens permaneçam no navio até o fim, e depois fiquem à deriva, não
quentinhos nos botes, de onde teríamos apenas uma visão parcial do desespero
das pessoas que ficaram flutuando na água, a minutos de morrerem congeladas se
a ajuda não se apressasse. Não. Cameron permitiu que seus protagonistas
estivessem entre essas pessoas, para que o público sentisse até o fim a
angústia das vítimas. Porque, naturalmente, ao assistir esse filme pela
primeira vez, todo mundo torcia pela sobrevivência do casal. Sabíamos que Rose
sobreviveria, afinal, era ela quem estava contando a história, mas torcíamos
também por Jack. E posso apostar que a maioria de vocês ficou puto ao ver que o
Cal sobreviveu.
James
Cameron verdadeiramente conectou o público com aquela tragédia, e fez isso
brilhantemente. E o mais importante, ele não deu nenhum ponto sem nó. Ao longo
dessa primeira hora e meia de filme, ele utilizou os personagens que criara e
alguns personagens inspirados em pessoas reais para lançar informações que
ajudam a entender o que realmente aconteceu naquela noite trágica de abril de
1912, e o que levou o Titanic a naufragar. Mas falaremos disso durante a
resenha.